edição número 36 - newsletter Buteco do Edu
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RABIOLA
Hoje (estou escrevendo numa segunda-feira, 17 de março) Elis Regina faria 80 anos e eu estou de novo com 12 anos de idade e estou sentado no chão da sala do apartamento 203 do edifício Jureva, na São Francisco Xavier 90, na Tijuca.
Faz sol e estou diante de uma lata de Nescau fazendo o papel de carretel de linha branca, e de diversas folhas de papel crepom colorido, fininho, montando a rabiola da pipa que soltarei assim que tudo ficar pronto.
Há um telefone branco, daqueles dobráveis, cafona toda vida (a-mo), que fica sobre uma mesa redonda, de madeira escura, à direita do sofá, colada à parede da janela da sala, e debaixo de um abajur de cúpula branca, ele todo verde claro, escamado, de louça.
Combina, o abajur, com a estampa do sofá - desenhos de plantas verdes sobre o fundo branco.
Lembro de tudo até hoje, esse adorável inferno que é carregar o peso das lembranças todas, nada esmaecidas (uma ou outra, vá lá).
O telefone tocou, como tocava todos os dias, eu estava na sala e o atendi.
Era minha tia Noêmia.
Queria, a tia Noêmia, que tinha a voz sôfrega e a respiração ofegante (arfava, enquanto falava comigo), falar com minha mãe.
Mamãe atendeu.
Lembro apenas de um grito - o quê?!?!?! - e de minha mãe desabando, sentada, no sofá e já chorando.
Me é vivíssima a lembrança de minha mãe, na seqüência dramática, discando para as pessoas, dando a trágica notícia a uma, duas, três, dezenas de amigos e amigas, chorando, dizendo sem esconder o choque:
— Elis morreu!
Larguei a pipa.
Eu tinha, a partir daquele momento, a frustração de uma promessa que jamais se cumpriria: minha mãe e meu tio Pedro Paulo, irmão adotivo de minha avó Mathilde, haviam me prometido no Natal de 1981 que me levariam para ver o show Trem Azul no Teatro João Caetano, na Praça Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro.
Seria a primeira vez que eu veria Elis Regina ao vivo.
As pessoas foram chegando, uma a uma, o toca-discos rodando Elis Regina sem parar.
O LP Essa mulher em looping.
Vovó, Beth, João Flávio, Pedro Paulo (o tio Pedrinho, casado com o Sérgio, amigo dele, era o que nos contavam apesar da cama de casal no único quarto do apartamento em que moravam juntos, na Lapa, na esquina das ruas Sílvio Romero com Riachuelo), Lys, todos chegavam sem disfarçar o assombro, a tristeza, todos choravam, e eu (é do que me lembro, e é o que também quero lhes contar) lembro do som do tilintar das pedras de gelo nos copos em que o uísque era servido sem parcimônia - ainda que fosse manhã.
De vez em quando alguém gritava do quarto de TV - vem ver! - convocando as pessoas para assistirem ao noticiário, que de São Paulo as notícias chegavam aos poucos.
Uma frustração (terá sido a primeira?) e uma obsessão que nascia ali.
Passei a consumir Elis Regina sofregamente.
Tio Pedrinho era (já morreu e ocupa a nau dos fantasmas que de vez em quanto aportam diante de mim) obcecado pela cantora. Eu digo obcecado e quero dizer, com isso, patologicamente obcecado. Não tinha, coitado, outro assunto. Era, por isso, chato, modorrentamente chato, maçante, colecionava discos, autógrafos, fotografias, recortes de revistas, de jornais, e eu não tenho a menor idéia do paradeiro de sua memorabilia (morreu em uma casa de repouso no Jardim Botânico, onde fui visitá-lo uma única vez).
Curiosidade: foi esse dia, inclusive, o único em que o nome Elis Regina não foi citado por ele.
Ele foi (tinha se transformado nisso), durante minha visita, um poço transbordante de mágoas.
Fiquei com ele, o quê?!, se muito, 15, 20 minutos.
Nunca houve, nunca haverá, uma cantora como Elis Regina Carvalho Costa.
Era única.
Pedro Paulo também era - e por muitas razões. Era um personagem interessantíssimo no panteão dos parentes, no panteão da família originária, um membro da renque dos fantasmas que cultivo.
Volto ao tema, porque eu amo falar sobre meus fantasmas.
É um modo de exorcizá-los, todos.
O que nada tem a ver com deixá-los longe de mim.
Até.
DAS PRATELEIRAS DO BUTECO DO EDU
O texto 30 anos sem Elis Regina é de 18/01/2012. Acredite em mim quem quiser: escrevi o texto acima sem ter lido o texto que agora reproduzo. E fiquei, eu realmente fiquei, impressionado com as semelhanças que comprovam a higidez das minhas memórias e das histórias que moram em mim. Eis o texto:
“Amanhã, 19 de janeiro de 2012, viveremos, no Brasil, uma grande saudade. Amanhã dir-se-á nos bares, nos salões, nas casas, nas cidades, nas esquinas:
– Estamos há trinta anos sem Elis Regina…
Elis Regina que, em seu último show, Trem Azul, disse, com a voz embargada:
– Agora eu sou uma estrela.
Não é fácil, meus poucos mas fiéis leitores, assumir-se assim. Mas Elis podia. Elis foi – e assim se mantém até hoje – a maior cantora que o Brasil já viu cantar. Elis foi, nos discos e nos palcos, além da voz humana. Mas não é sobre Elis, não é sobre sua biografia, tão exposta por aí, que quero lhes falar. Quero lhes falar, pra manter meu modus operandi, de minhas lembranças e de minha alma, previamente à espreita do dia de amanhã, que há de ser, por conta dos trinta anos sem ela, um bocado comovido.
Eu estava sentado no chão da sala do apartamento 203 da rua São Francisco Xavier 84, na Tijuca. Eu estava de férias. Estamos em 19 de janeiro de 1982. Tocou o telefone, eu atendi. Era minha tia Noêmia, queria falar com minha mãe. Chamei mamãe. E vi minha mãe incrédula repetir diversas vezes – “o quê?”, “como?”, “quando?” – até que desligou e disse, em direção a mim:
– Elis Regina morreu.
Notem vocês: eu era um menino, tinha apenas 12 anos de idade. E aquela notícia me pregou uma peça. E me pregou uma peça porque eu tinha uma promessa, feita por mamãe, semanas antes: ela iria me levar pra assistir, pela primeira vez, no Teatro João Caetano, ao show Trem Azul, em excursão pelo Brasil. Eu, portanto, nunca tive o privilégio de assistir Elis Regina ao vivo. E sobre isso, uma palavrinha… para que tenham noção, os mais jovens, de quem foi Elis Regina. Hoje, no Brasil, quando Chico Buarque, por exemplo, faz temporada de um mês no Rio de Janeiro, diz-se: grande temporada. Pois Elis fez temporada de um ano e meio (eu disse um ano e meio!) em São Paulo, no Rio de Janeiro, casa lotada de quinta a domingo. Porque era, sobretudo, uma cantora a serviço de seu povo, uma cantora popular. Hoje, o Brasil inteiro louva João Bosco, Aldir Blanc, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Belchior, Guinga, tantos, tantos, tantos!… e é preciso que se diga: foi Elis Regina a primeira a abrir, pra cada um desses monstros sagrados, a primeira porta. Voltemos a 1982.
A casa de meus pais foi, naquele 19 de janeiro, palco de uma procissão de homens e mulheres em estado de choque. Lembro-me, mais, que logo depois de desligar o telefone, mamãe foi à vitrola e pôs Essa Mulher, LP de Elis Regina, de 1979, e foi Elis Regina que tocou o dia inteiro em nossa casa. A notícia, a crueza da notícia, a morte por overdose, a mistura trágica de cocaína e álcool, pegou a todos de surpresa… e o desaparecimento precoce da maior cantora do Brasil, enterrada com a camisa que foi impedida, pelo regime ditatorial, de usar no show Saudades do Brasil, deixou para sempre um vazio impossível de ser preenchido (e como compreendo, hoje mais que nunca, o que é esse vazio…).
E quero, por fim, dividir com vocês o que descobri hoje e que considero um tesouro. Mais de 60 minutos, gravados ao vivo por uma rádio gaúcha, e posteriormente gravados por uma boa alma, do show Trem Azul, em Porto Alegre, no dia 19 de setembro de 1981 – exatos quatro meses antes de sua morte.
É Elis Regina em estado bruto. Técnica perfeito, abuso – no limite – de sua força técnica, repertório impecável e um registro emocionante – e que pode ter sido o último – de Elis Regina ao vivo, hoje uma forma nebulosa feita de luz e sombra: como uma estrela.
Até.”
LIVROS (A HORA DA JABALÂNDIA)
Publiquei poucas coisas até hoje.
Mas publiquei.
Meu lar é o botequim, que está esgotado*, foi o primeiro (mentira, tenho vergonha do primeiro e por isso eu o omito), lançado em dezembro de 2005. Pode ser comprado só em sebos (aqui) - tenho apenas um exemplar novo em folha e que estou aqui pensando como posso sortear.
De hoje não passa, escrito a quatro mãos (uma troca de cartas) com Julio Bernardo (aqui).
E Tijucanismos, aqui.
Uma ou outra coletânea… e olhe lá.
Vamos a um spoiler: ano que vem lançarei Meu lar é o botequim, edição de 20 anos. Revisto, reescrito, mas com o mesmo espírito que norteou o lançamento em dezembro de 2005.
UMA DICA DE PLAYLIST
Quero indicar a vocês, meus poucos mas fiéis leitores, uma das playlists que montei no Spotify - Rio de Janeiro - que já conta com 201 seguidores, 58 músicas, 3 horas e 30 minutos de som.
Ela será permanentemente incrementada (e eu aceito sugestões que podem ser enviadas por e-mail!).
Ela está aqui ou, se preferir, ouça já! - abaixo.
A referida playlist deve ser ouvida no modo aleatório e, repito, está longe de estar definitivamente pronta. Assim como eu.
Até.
Podemos continuar o papo (e você pode saber mais sobre mim, nessa exposição permanente que são as ~redes sociais~) no Twitter | no Instagram | ou no YouTube
Dúvidas, sugestões, críticas? É só responder esse e-mail ou escrever para edugoldenberg@gmail.com
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